PENSANDO

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sexta-feira, 6 de junho de 2014

QUANDO O SONHO ACABOU EU NEM ESTAVA SABENDO QUE ERA PAR TER COMEÇADO A SONHAR.

Eu também nunca tinha ouvido falar de Freda Kelly... pode ser até que eu tenha lido o nome dela na biografia dos Beatles, mas passou batido, a referência, se houve, foi tão pequena e rápida que eu nem notei. Mas não é justo deixar de lado essa figura histórica do rock porque ela é uma das chaves para entender um dos sentimentos mais importantes e profundos do século passado e poder ser que tenha sido o sentimento mais importante na história da juventude, desde que os jovens existem.
Nos tempos dos homens das cavernas as crianças existiam, mas não existia a infância... coisa óbvia que crianças existiam... mas a infância foi algo descoberto na idade média, ou a partir dela. Antes disso um ser vivo era um ser vivo. A luta pela sobrevivência era tamanha que não fazia a menor diferença saber se o vivente era uma criança, um jovem, um indivíduo adulto e produtivo ou um velho. As pessoas simplesmente nasciam e depois de muita luta, sofrimento e falta de sentido na vida, morriam... e era só. Na idade média começou-se a levar em consideração que crianças tinham uma capacidade diferente de ver o mundo e tinham sentimentos diferentes dos demais... descobriu-se a infância, ou, uma idade do individuo em que os adultos deveriam ser mais suaves, cuidadosos e exemplares, porque era desse material que as crianças tiravam as informações para crescerem e se tornarem adultos mais produtivos. A infância então passou a ser objeto de atenção e por essa época começam a ser criados os contos de fadas, ou um jogo de histórias que servia para ensinar, ilustrar e distrair as crianças. A juventude foi uma invenção posterior a da infância, ela tentaria existir em vários momentos da história da humanidade, mas só passou a existir de fato e quase que globalmente nos anos 50 do século XX. Maluco né? saber que a juventude ainda não completou 100 anos.
A juventude era ou é um meio termo entre a infância e a vida adulta, é uma espécie de pode não pode, é uma luta de você com você mesmo e de você contra o resto do mundo. Em alguns momentos os jovens por meio de um algo que não se sabe ao certo o que é, passa a pensar e agir de forma idêntica e essa identidade faz existir os movimentos, ou os fenômenos de uma época que chamamos de movimentos, movimentos porque movem os jovens todos num sentido único e num propósito igual.
Aconteceu nos anos 60 de uma banda praticamente inventar o rock como o conhecemos hoje, e isso acho que já andei escrevendo por aqui. Bem, os Beatles saíram do nada e muito rapidamente viraram o tudo na vida de muita gente. Essa gente toda, milhões ao redor do mundo, esperavam por algo para se liberarem... mas essa libertação não tinha lá um contorno muito claro, no caso dos Beatles parece que o negócio era só correr atrás deles e gritas, arrancar cabelos e desmaiar... aconteceu em todas as partes do mundo por onde eles andaram no curto espaço de tempo em que existiram. Eles começaram e em seguida começou a gritaria e a correria atrás deles, e isso até hoje, bem estudado não faz sentido algum. Mas era o mundo da época, ser meio abobalhado, meio sem sentido, hiper valorizar coisas que não pesavam tanto assim na vida da maioria das pessoas, era tipo criar uma realidade paralela, mais ao gosto e meio que acessível apenas aos iniciados. O grande sonho de qualquer jovem inglês, principalmente, era tirar uma lasquinha dos Beatles, estar perto, ouvi-los, falar com eles, conseguir um autografo. Esses, entre outros elementos construíam o mundo da juventude daqueles anos de sonho. O sonho era isso, era poder, pelo direito dado pela natureza à juventude, gritar, dançar, cantar, ficar estérico ao som do rock... uma música horrível e desprezada por todos que não eram jovens. Os modismos existem para agredir e a beatlemania agredia muito.
Chegar perto de um Beatle, de repente virou algo impossível, era fácil, mas a subida deles foi tão vertiginosa que em poucos segundos eles se tornaram além homens... mas, alguém resolveu formar o fã clube oficial dos Beatles e por um acaso quem acabou encabeçando, bem acidentalmente, essa empreitada foi uma garota de 17 anos chamada Freda Kelly que zanzava por ali com as mesmas intenções das demais garotas: ficar perto dos quatro rapazes. Ela era uma datilógrafa que na hora de seu almoço ia ao Cavern Club ver os Beatles em suas primeiras apresentações públicas... e elas ocorriam diariamente nesse local insalubre e pouco abonador, um porão de ar parado, banheiro entupidos e úmido... uma caverna mesmo. Pela frequência e pela conjunção dos astros eis que alguém a convida para colar selos eu acho e ela abandona o emprego de datilógrafa e começa a desenvolver algo que também a história da humanidade ainda não havia construído que era a dirigente de um fã club... elas ficou 11 anos trabalhando a serviço dos Beatles e se saiu muito bem, mas no inicio deu o endereço de sua casa como sendo o do fã club, ela não pensou no que fazia... mas nos primeiros dias começaram a chegar 10 ou 20 cartas e seu pai ficou fulo da vida, mas ele enlouqueceu quando tinha que buscar a sua correspondência pessoal e suas contas para pagar no meio das mais de 3000 a 4000 cartas que chegavam diariamente, um caos na vida do velho.
Freda respondia cartas, colhia autógrafos dos quatro e colava selos.
Mas isso era o de menos, o de mais era ser a unica jovem de dezessete anos a viver ao lados dos Beatles quase todos os dias, e a frequentar a casa deles, ser amiga dos pais deles e saber tudo sobre suas intimidades. Esse era o sonho completo de todas as demais jovens da mesma idade no mundo: poder viver ao lado de seus ídolos todos os dias e ser parte de algo que esta acontecendo de forma arrebatadora e mudando a face da sociedade e criando várias coisas que antes não existiam e que viriam para ficar, entre elas a consolidação da rebeldia dos jovens, algo que não era permitido até então.
Freda passou a existir no ano passado com o filme NOSSA QUERIDA FREDA.
Não é um super documentário e só interessa aos beatlemaniacos, mas ela fala sobre o fim do sonho e isso transcende a beatlemania... a juventude delirou e gozou na ideia de que aquilo era para sempre. Na verdade é, parece que só os roqueiros que tinham 17 anos nos meados dos anos 60 é que descobriram a juventude eterna na mente e da alma. Mas nos anos 60 eles viram tudo começar explosivamente e acabar mais explosivamente ainda. Havia uma gigantesca lição ali, alguém estava querendo ensinar que a vida requer intensidade, que o momento é agora e que o sonho evapora na mesma velocidade com que se cria. Freda em alguns momentos fala das perdas, daquilo que sentia, da felicidade que era fazer parte daquela família e daquele movimento. Simbolo do sonho dentro do sonho, ser, não um dos Beatles, mas ser a pessoa que não sendo um dos Beatles vivia com eles e como eles, e isso hoje tem toda a validade, porque a figura do fã não deixa de existir e isso vazou para todos os ambientes onde possa haver uma celebridade, meteórica que seja. Hoje as pessoas ainda se matam para ficar na fila do gargarejo, passam noites em filas para comprar ingressos e depois em mais filas para ser o primeiro a entrar e poder ficar mais perto, e perseguem os ídolos e se sacrificam anonimamente por eles e nem sabem exatamente o significado dos ídolos em suas vidas, mas todos querem fazer parte, querem ser uma lasca que seja da celebridade. Essa louca forma de ser é uma invenção do século passado que ganhou uma força desproporcional nestas primeiras décadas do século XXI. A uma energia enorme sendo consumida para se obter a notoriedade e uma outra energia muito maior ainda para tentar viver a vida do ídolo integralmente, seguir os passos, copiar os modos e consumi-lo ao desgaste.
Eu descobri que os Beatles existiam só depois que eles já tinham acabado com o grupo, a isso dou o nome de Síndrome de Barichello, é o efeito de chegar atrasado, depois que a coisa acabou. Mas o material produzido é farto e deu para viver bem só com ele pelos últimos 40 anos... e penso que ainda não cheguei à metade do tudo. Mas o clima, a estería que foi possível de ser vivida por poucos que estavam próximos aos trajetos deles, os demais viram no cinema, nas revistas e nas tvs o que foi o clima de transgressão. Mas foi também uma enorme zona de conforto, um quarto onde você podia se trancar com os amigos e ouvir uma música que é boa até hoje. Esse clima de fraternidade e cumplicidade é o grande formador do caráter de muitos, é quando se descobre a extensão da gente nas outras pessoas, e por ai se descobre que os sentimentos da gente também vivem idênticos em outras pessoas. Esse comum entre as pessoas reforça a certeza de que estamos no caminho ou em algum caminho, isso dá firmeza, da noção e acalma, mesmo excitando. Ficar agrupado a quem pensa igual é fazer parte e fazer parte é meio caminho para a felicidade. Partindo de estar enturmado fica mais clara a visão do todo e das opções de escolha, por isso os movimentos são tão temidos. Quando um grupo elege um sonho em comum, ele pode passar, sabe-se lá por quê, a atrair mais e mais pessoas para essa ideia já aceita e confirmada e isso em geral causa algum dano para o estabelecido. Por isso quando o sonho acabou a Freda suspirou fundo e disse, acho que disse: O que eu vou fazer de minha vida agora? Na verdade ela já havia se casado e teve um casal de filhos e apenas continuou ( até hoje ) a trabalhar como secretária executiva, não enriqueceu e não fez uso dos contatos e influências que teve para obter vantagens pessoais, é quase uma santidade. Grande e invejada figura essa Freda Kelly...
Mas não me tranquei em quarto algum com amigos para ouvir os Beatles, não fiz parte e isso é um imenso vazio em mim... faltou uma parte de minha vida, não soube vivê-la adequadamente e agora já é quase tarde, mas sempre há um algo possível pairando por ai... mas inspirei, algumas pessoas conheceram os Beatles e outros grupos por intermédio de minhas influências e isso é um gozo. Fiz diferente, mas fiz algo.
O filme da Freda é um filme triste do começo ao fim... ela é a verdadeira viúva dos Beatles, é a mulher que viveu a vida deles, a vida da família deles, dos casamentos deles e se você junta tudo isso mais a obra que ela de alguma forma esteve perto quando estava sendo feita ( participou como figurante no filme The Magical Mistery Tour de Paul MacCartney )  e de dentro do olho do furacão foi mais uma das pessoas que o fez acontecer sem saber que estava fazendo. Como não havia uma doutrina, um dogma ou um plano, o sonho consistia em fazer algo naquele momento que já deveria ter sido feito ontem e ninguém se deu conta que era para fazer... ou seja, o sonho, em seu mecanismo orgânico, era tão somente uma gambiarra improvisada que nós hoje acreditamos seguiu na maior parte do tempo na direção certa, mas que em algum momento tropeçou, deu no saco, desgastou e implodiu. Terminou em alta e com isso tornou-se imortal, mas não é qualquer imortal é um imortal baseado numa memória afetiva forte demais e que vem passando por meio do DNA a novas gerações...
Então o sonho é uma coisa assim: De um lado quatro pessoas que inicialmente queriam apenas tocar música, passaram a fazer músicas bem feitas, acharam algumas pessoas certas, descobriram alguns caminhos nunca antes pisados e com isso criou-se um movimento em direção, olha que merda, ...em direção ao final do sonho. Quem sonhava? Bem, quem sonhava era que não estava fazendo o movimento produzir, eram os que consumiam o produto... e quando disseram que o Sonho acabou, o que havia acabado era a união disso tudo e não tinha mais como manter esse todo unido, e isso não ficou bem claro até hoje, por mais que se queira pensar e filosofar sobre. Mas pode acontecer com qualquer um de nós.
Bem descobri a Santa Freda Kelly, que um dia escreveu na revistinha que os Beatles editavam que o fã club oficial esta terminado, que os Beatles não existiam mais e que ( não foi ela que disse ) o sonho tinha acabado...

PS.: Brian Epstein, empresário dos Beatles, morreu no auge do grupo e isso foi o primeiro passo do fim, já que eles não tinham a menor ideia de como gerir as coisas...
Depois da morte do grupo, John Lennon é assassinado e isso coloca fim ao reinicio do sonho.
Mais alguns anos e morre George Harrison e mais uma pá de cal é colocada sobre o sonho do sonho voltar.
Eu como não vivi os anos ao vivo, sonhei que eles poderiam voltar e trazer tudo de volta, mas isso era uma miopia dos fatos que eu tinha. Não é possível reconstruir coisas que tiveram como fator fundamental de sua existência a espontaneidade dos agentes. Foi fundamental não ter intensão alguma para que tudo pudesse ter sido real.