PENSANDO

PENSANDO

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

AZZARI

Por volta de 1968 a 1970 um certo Armando trabalhava na Fontoura Wheit, que fabricava o famoso Biotônico Fontoura, o creme dental Kolinos e o desodorante Van Ess entre outros produtos. Trabalhava na unidade do Brás, provavelmente, na função de craviculario, aquele que organiza as chaves de um empresa, e também dava ordem em arquivos e fazia coisas absolutamente sistemáticas, e certamente cobrava organização e disciplina de seus usuários. Devia ser um fanático chato prá cacete. Era casado tinha um casal de filhos, e vivia muito mal com sua mulher de quem depois se separaria, mas isso mais adiante, então passaria a se dar muito mal com sua filha, uma eterna insatisfeita segundo ele.
Um dia, não sei exatamente por quê, ele tomado por uma angustia profunda, um descontentamento total com a vida e às beiras de um imensa depressão andava pela Av.Brigadeiro Luis Antonio que, prá quem não é de São Paulo, é a avenida que liga o centro da cidade ao Parque do Ibirapuera cruzando com a Avenida Paulista, é a subida final da corrida de São Silvestre, a pena que detona os atletas mais bem preparados e define o grande vencedor da prova, ou seja um martírio. Nela ficavam na época as 5 salas do Cine Paramonth, O teatro Bandeirantes, em suas esquinas ficam as sedes das empresas do Grupo Silvio Santos, lá o nosso atual presidente da república ficou semanas preso num quartel do exército, nela foi velado o corpo da Elis Regina e uma imensidão de coisas ligadas à cultura paulistana aconteciam nessa importante avenida na época.
Hoje a Brigantonio Luisandeiro é meio decadente. Mas não sei lá que coisas fazia o Armando angustiado andando por ela. Nem por qual razão ele percebeu que varias pessoas estranhas entravam num casarão em plena tarde e movido também por sabe-se lá qual motivo tratou ele de lá também entrar. Era uma apresentação gratuita da peça Morte e vida severina num teatro de arena. Ele sentou e assitiu a peça. Nunca antes na vida ele havia assitido a uma peça de teatro.
Adorou, se emocionou e perdeu a conexão com a vida que levava naquele momento. Houve um rompimento tão radical que ele nunca mais na vida encontraria, em meu entender, um rumo certo. Ao final da peça, aplausos e um dos atores falou assim:
- Hoje foi o último dia de trabalho do nosso colega fulano de tal, para manhã precisamos de alguém em seu lugar... na platéia alguém se habilitaria a fazer parte de nosso grupo?
Armando timidamente levantou a mão. Mudava com esse gesto totalmente a sua vida e no futuro a minha também.
No dia seguinte ele chegou mais cedo ao teatro, decorou suas falas e marcações e estreou no teatro. Não sei quanto tempo levou prá contar para a família, nem como se virou com o emprego. O fato que daquele dia em diante passou a viver de teatro.
Participou de varias montagens, mas a mais importante sem dúvida foi Rasga Coração de Oduvaldo Vianna Filho o Vianinha. O mesmo Vianinha que criaria o seriado A grande família no ar na Rede Globo a já dezenas de anos. O elenco da peça era encabeçado por Raul Cortez, Claudio Mambertti, Sonia Guedes dentre muitos outros que eu injustamente não sei listar neste momento. Depois ele prossegui estudando na Escola de Artes Dramaticas EAD da USP, colega de turma da Lilian Cabral e Paulo Betti, e passou a ganhar a vida dando aulas de artes dramáticas, dentre outras coisas na Universidade Metodista de São Paulo, na Fatea, na Fasp e em outras faculdades de forma meio inregular e aleatórias. Fazia varios comerciais de tv e era quase impossível ligar a televisão e não velo na tela, era um depois do outro, só não anunciava cigarros e bebidas alcoólicas. Tornou-se vegetariano e comia apenas pizza, e
preferencialmente no Micheluccio da Rua Domingos de Morais no Paraiso.
Mas em 1983 entrei na Universidade Metodista para cursar Publicidade e Propaganda e logo de cara descobri que havia um grupo de teatro estável. Eu já havia assitido a algumas dezenas de peças e era apaixonado por teatro, tramei me envolver com o grupo. No trote cultural, houve uma apresentação da peça O auto dos 99% escrita coletivamente no Centro de Cultura Popular por Oduvaldo Viana Filho, Giafrancesco Guarnieri, Cecyl Thirré dentre outros, o grupo de teatro chamava-se Libertá, e a montagem deles dirgida pelo Armando já contava mais de 1oo encenações por teatrinhos capengas, garagens, igrejas, acampamento de invasores e coisas marginais do genero. A montagem estava capenga e esgarçada, mas adorei. Me encantei principalmente com uma atriz minuscula e bem limitada com quem me casaria alguns anos depois. Mas ao final da apresentação fui cumprimentar os atores e fui solemente esnobado por eles, dois anos depois eu dirigiria o grupo em uma tentativa de voo solo com texto próprio que não decolou. Mas obstinado e decidido fui atrás deles e no sábado seguinte eu e uma amiga a Regiane invadimos o Teatro Sergio Cardoso em São Paulo e ludibriando o segurança usando como instrumentos os peitões e a jeans-lycra justissimo dela, ninguém resitiria, para assistir a um ensaio onde o grupo faria uma réles figuração. De cara encontrei o Armando de cuecas costurando uma calça de seu figurino, serramos uns cigarros de menthol do Zé Guilherme que era uma estrelona da Globo e tomamos mais uma esnobada, desta vez da Lilian Cabral que apresentada não estendeu a mão, apenas olhou com nojo: -Quem são vocês seus ratos maltrapilhos???? ( bem, ela não disse isso prá nós, acho que só pensou). Mas o grupo figurou minusculamente no ensaio e eu nem fui com a Regiane ver a apresentação, achamos que não valeria a pena. Mas uma semana depois eu estava fazendo parte integrante do grupo no cargo de carregador de trambolhos, motorista, fornecedor de vinho branco prá eles tomarem a vontade em minha casa, futuro noivo da tal atrizinha e assistente de direção da nova montagem que fariamos em seguida a uma peça que estreariam nos próximos dias, uma tal de Esfregando os
rocamboles nas bissetrizes, uma criação medonha, sem graça, dum grupo chamado GP ( Grandus Pintus ) que seria uma fracasso gigantesco, só menor que arrogancia dos caras que a escreveram.
Passado esse vexâme, o grupo se despediu de alguns integrantes, adquiriu algumas pessoas verdadeiramente maravilhosas e partimos para a montagem do texto O analista de Bagé de Luis Fernando Verissimo. Foi o período mais feliz de minha vida, nunca mais consegui repetir uma sequencia de felicidade tão completa e intensa como aquela. Eu e o Armando nos tornamos unha e carne, viviamos prá cima e prá baixo juntos. Ele tinha um hobby muito interessante, roubava livros. Tinha milhares deles não lidos e passou a roubar para mim. Muitos dos livros que tenho são roubados naquela época. Ele usava seu rosto conhecido da tv e engabelava as pessoas nas livrarias e nos sebos. A montagem do Analista foi fantastica e falarei sobre ela em outra oportunidade porque tem muita coisa legal prá contar. Quando sobrava tempo eu estudava na faculdade, mas meu mundo era o teatro e o Armando meu eixo na vida. Passada a montagem e a encrenca em que nos metemos por não pagar direitos autorais sobre o texto o Armando foi trabalhar dirigido pelo Flavio Rangel na peça Negócios de estado com a Vera Fischer e o Perry Salles no teatro Hilton em São Paulo e eu sempre ao lado dele e agora da Vera Fischer, a coisa estava realmente muito favorável para eu ser feliz completamente.
Mas dai algumas coisas aconteceram, o Armando era um anarquista nato e eu também me tranformara em um anarquista radical, depois falo sobre anarquismo, alem dele ser um comunista de carteirinha que não poupava nada nem ninguém. Ele não era corajoso era louco mesmo. E aconteceu dele e de outros professores serem demitidos da faculdade. Bem, deixei o Armando de férias na casa dele já com sua segunda esposa a Nilse e sua filha recem-nascida a Talita e juntamos um grupo e invadimos a reitoria da Universidade ( na verdade na época diretoria das faculdades ), morei na sala do diretor uma semana, só sai prá ir trabalhar, passava em casa jantava e ia prá lá. Era uma festa, mas veio a policia, uma tremenda tropa de choque com escudo e cacetetes, eu chegava do trabalho e fui o último que conseguiu entrar. O capitão da PM disse que não ia sujar o curriculo dele batendo em estudante, falou prá gente ir cuidar da vida e parara de encher o saco e foi embora com a tropa, com isso meu curriculo ficou magro.
Mas os professores foram reintegrados e nós ingenuamente passamos a acreditar que tinhamos vencido. Terriveis forças ocultas roiam nossos alicerces e numa montagem de uma leitura dramatizada que fariamos dirigidos pelo Armando ele foi tão boicotado e meu grupo, já não mais o Libertá que nesta época já havia sido convidado a deixar as dependencias da faculdade porque era formado só por ex-alunos e integrantes de fora, foi sabotado em tudo quanto foi possivel. Com isso a temperatura subiu a niveis elevadissimos e eu o Armando nos desentendemos de forma mortal pela primeira vez em nossa deliciosa amizade. Ele não veio na apresentação, mandou um recado pela esposa que também era professora da faculdade e eu disse algo a ela que não devia. Ela levou o recado e a resposta veio na forma de um dossiê maldoso que ele escreveu, documentou e distribuiu entre varias pessoas inclusive eu. Fiquei muito magoado com as meias verdades que ele escreveu e acho que destrui o tal dossie, não me lembro.
Toquei minha vida, magoado e agora sem nenhuma felicidade. Fiz varias pequenas direções teatrais de psicodramas para varias turmas da faculdade de psicologia e isso enfureceu ainda mais o Armando que apresentou queixa na direção da faculdade por eu estar trabalhando sem ser habilitado. Abandonei tudo isso, mudei de rumos, me casei e fui morar em Paraty-RJ.
Lá soube que o Armando tivera um tumor no cerebro e que morrera num hospital no Japão tentando um cirurgia que fracassou. Nunca mais me completei depois disso. Perdi o maior amigo que tive na vida. Todos em casa adoravam ele, sua alegria, as confusões que incorria por ser desligado, seu perfume sempre em exagero, suas relações com a cultura e arte, sua simplicidade e generosidade. Era indiscutivelmente um cara dificil. Mas era uma cara com uma história incrivel por quem todos se apaixonavam de imediato, as mulheres se matavam por ele, mas ele era radicalmenet fiel a Nilse. Seu filho Ernando tornou-se também ator profissional chegando a fazer algumas novelas, e a Julia Lemmertz e seu marido Global deram à sala de cinema que teem em São Paulo o nome de Sala Armando Azzari.

9 comentários:

creuza disse...

PRIMITO!!
FIQUEI CHOCADA...como não sei nada de sua vida...como este texto retrata tão bem um periodo de sua vida , da até prá sentir a emoção em cd palavra...sempre fico pensando como cd um de nos ,primos,fizemos nossa história,seguimos rumos tão diferentes ,vivemos momentos únicos e que só agora estamos tendo a possibilidade de conhecer !!!viva a era da informatica...sem esta máquina talvez esta proximidade não seria
tão possivel e eu poderia morrer e não saber que tinha um primo tão
ligado ao teatro assim!!!vc me fez lembrar tbém que uma das melhores peças que assisti foi o analista de bajé ,é uma pena saber que a cultura teatral ficou restrita a uma minoria devido ao preço absurdo do teatro,não é????
bjss
Creuzita

Família Meneghel disse...

Creuzita dorminhoquita.
Você sabe muito sobre mim, mas nós vivemos muito nesses anos todos e não conseguimos comunicar uns aos outros essas vivências. Mas o plano era viver e isso fizemos bem.
Acho que as pessoas não vão ao teatro porque não gostam mesmo de coisas boas, tem muito teatro de graça tem muito grupo amador se apresentando e o publico nunca deixa de ver novela. Na real acho melhor que seja prá poucos.
Um carinhoso abraço. Vou marcar o dia da pizza.

Andréa Lopes disse...

História incrivel! Que mundo maluco que conspira grandes mudanças e reviravoltas. Tantas coisas pra se comentar deste texto...mas, na minha opinião, a grandeza desta história é o reconhecimento.

Abracx

Andréa

Anônimo disse...

Então esse era o lance com o Armando. Lembro daquela turma de doidos chegando na sua sala com teto de folha de HQ e estantes rústicas de madeira verde em tijolos brancos caiados. Uma zona total e muito diferentes dos padrões normais. Tb lembro de ter estudado com a Rita Banana, que era do grupo, e de um trabalho de economia que eu fiz e tirei 7,5; ela copiou e tirou 8 e vc plageou e tirou mais ainda. Creio que foram bons tempos, só me arrependo de ter invadido aquela reitoria com um tal de Orlando (que depois virou candidato do PT a vereador) manipulando os bixos...Quanta ingenuidade. Estudar que era bom, nada. Viva as aulas no Camelão!

Família Meneghel disse...

Andréa
Esta fase de minha vida foi o mergulho mais profundo que fiz nas oportunidades que me apareceram.
Foi tão intenso e gerou tanta experiencia que depois disso passei a ser muito cauteloso em tudo e nunca mais consegui repetir o feito de forma tão intensa e prolongada.
Mas acredite, a história foi contada em menos de 1/10 de sua totalidade, tem tantos detalhes e tantos envolvimentos que ainda terei que voltar muitas vezes a ela para vocês saberem a intensidade real de tudo.
Abração.

Família Meneghel disse...

Arqui.
Calculo termos bebido mais de 300 garrafas de vinho branco naquele período. Eu comprava no Sta. Tereza
duas caixas por quinzena, e um dia eles me perguntaram: - Onde vc consegue estes vinhos?
Eu respondi: - Eu compro!
O Armando raramente vinha, mas a casa era a sub-sede do grupo.
Concordo, O Orlando era um cafageste, tinha aquele caderno em branco dele a anos debaixo do braço fazendo tipo de universitário e aquela fala mansa, negociadora, que ninho de cobras, e pensar que daquelas cabeças, daqueles professores saiu o Partido dos Trabalhadores. E pensar que os caras chegaram à presidencia, a gente bebia cerveja com eles.Eles mentiam descaradamente.
Mas vamos contar tudo isso aos poucos.
Abçs.

Anônimo disse...

Depois que fiz o comentário ve veio à mente a cena de vcs bebendo, fumando, ouvindo música e encenando... aí percebi que isso me lembrava a cena inicial de Jesus Cristo Superstar...ou, às vezes, Priscila a Rainha do Deserto. Depende da referência.

Anônimo disse...

Caraca,

Como uma googada nos remete as melhores surpresas, fui aluno do Azzari e da Nilse na Metodista, formei-me em Jornalismo em 1983 e tornei-me amigo do casal. Que relato de cumplicidade, se invocado o Azzari era o INVOCADO, se o amigo era o AMIGO. Saudades! Por onde andam Nilse, Talita?

Tatilita disse...

Não sei se o blog ainda está ativo, mas sou Talita, a filha recém nascida (agora com 28 anos).
Papai não faleceu no Japão, foi pra lá tentar um tratamento, mas faleceu num hospital em SP, no dia do aniversário da minha mãe, a Nilce.
(mais um detalhe: do primeiro casamento eram 3 filhos, mas desconheço a parte dele não se dar bem com algum dos três).
Gostaria de saber mais, ler mais histórias, adoro saber as coisas do meu pai!
Muito obrigada!
Talita Gonzalez